Impressionante como o ser humano tem uma capacidade maravilhosa de “taxar” e tornar ruim tudo aquilo que ele não é capaz de executar, ou de abdicar. Incrível como tudo aquilo que parece “diferente” de repente ganha uma conotação ruim aos olhos dos que não compartilham do mesmo modo de vida.
Com certeza muito atleta passa como maluco, até mesmo vagabundo aos olhos daqueles amigos ou parentes que por algum motivo parecem não aceitar nossa opção de vida. Até aí tudo bem, vamos concordar que muitas vezes, nós atletas, somos “um pouco” exagerados, mas porque isso parece incomodar tanto? Afinal de contas é como se nossos treinos e competições deixassem as pernas deles doendo, ou como se quanto mais saudáveis e rápidos nós ficamos, mais sedentários e doentes eles ficam.
Com certeza existe alguma coisa na natureza humana que é incapaz de aceitar o fato de que alguns realmente vão atrás daquilo que querem, que mudem e moldem as coisas ao seu redor para que seus objetivos e metas sejam alcançados – e não, eu não estou me referindo somente aos grandes atletas e grandes campeões, ao contrário, a grande maioria dessa “diferença” acaba acontecendo com aqueles que simplesmente estão lá por prazer.
O incrível é que quanto mais eu vivencio e presencio esse tipo de coisa, mais eu acho que eles não fazem por mal.
Você chega em casa acabado de um treino de sei lá, 120km de bike, e recebe o telefonema de um amigo (não relacionado a sua vida esportiva) convidando para uma festa ou uma balada. Relutante você aceita ir, mas adverte que está cansado por causa do treino recém concluído e que no dia seguinte vai ter que acordar cedo para correr 15km e nadar.
Pronto, na hora a atitude desse amigo muda e ele passa a julgá-lo como se fosse Deus, dizendo que você é louco, que nada disso faz sentido... as vezes vai fundo e coloca dedo em feridas inexistentes como família, pais, namorada(o), marido/mulher e filhos... e por aí vai.
Em princípio você se sente acuado, “P” da vida porque afinal de contas você faz tudo isso porque gosta não rouba nem lesa ninguém no processo e esse é o seu jeito de curtir a vida. Quanto à ferida, mesmo inexistente ele te faz sentir culpado. Você olha pra sua mulher, namorada, filhos, pais... e se pergunta se ele tem razão... Aí, no meu caso:
“Se eu tivesse continuado na minha vida pré-esporte, fumante e pesando 130kilos provavelmente eu passaria mais tempo de ressaca, doente, estressado e na cama (ou de cama) do que eu passo treinando, portanto foi uma troca muito boa, não só em termos de quantidade como de qualidade.”
Mesmo com todo esse dilema, você vai pra festa/balada com a galera porque afinal de contas você preza as outras coisas da vida e sabe no fundo que aquele amigo não faz essas coisas por mal. Aí você já chega no lugar, antes que todo mundo (porque esse negócio de vida de atleta é assim a gente vai espremendo tempo pra conseguir colocar tudo num dia de 24h) e morrendo de fome, porque teu metabolismo é algo que nenhum desses seus amigos vão conseguir compreender e você ainda tem que dar nutrientes pro teu corpo se recuperar dos 120k de bike e se preparar pros 15k de corrida. Ainda assim, mesmo com todo esse esforço agüenta gozação de tudo que é tipo.
Quando você já está de saco cheio de ouvir de futebol, política e religião... e pronto pra jogar a toalha enquanto todos estão ficando “altos”, se divertindo com coisas que pra você não fazem o menor sentido (porque você é provavelmente o único sóbrio a essa altura do campeonato) o inesperado acontece...
-Vem cá que eu preciso te apresentar esse cara – você ouve...
E vem um dos seus amigos trazendo uma pessoa que você nunca viu na vida dizendo:
-Esse meu amigo é triatleta, corre maratona, Ironman (e o ápice pra qualquer um que não conhece nada sobre o esporte) e já correu a São Silvestre... pior de tudo – continua ele – ele bebia, fumava e era obeso!
-Correu a São Silvestre!!!! Nossa...
De repente a balada começou a ficar interessante novamente e juntam uns 2-3 curiosos pra ouvir e perguntar sobre treinos... Você conta no máximo uns 50% de tudo que faz e logo vem aquela “Nossa... você é profissional, não?” E aí o grande momento antes de você deixar o recinto e ir pra sua cama que já não agüenta mais de saudade: “Não, não sou profissional e pra falar a verdade nem sou bom o suficiente pra justificar tudo isso... mas faço isso porque gosto, porque é parte da minha vida, e porque não consigo me ver sem... É minha cachaça!”
Aí eu chego em casa me sentindo a melhor das pessoas, e é disso que eu lembro e comemoro cada dia de treino e cada prova completada, sendo ela boa ou ruim!
9 comentários:
Fantástico,
Quem de nós nunca passou por isso?:-)
Demora um pouco para aceitarmos esse tipo de coisa, mas depois nos acostumamos... afinal, fazer o que???
Ale
Muito boa narrativa...
Mas penso que não é só atleta que passa por maluco não... Acredito que qualquer pessoa que se disponha a romper com o “senso comum”, que realiza algo diferente da maior parte da sociedade está sujeita a sofrer “pré” conceitos.
Penso que o mais importante na vida é sentir prazer e felicidade. Portanto, seja esporte, ciência, religião, escrita, leitura... seja o q for que te faz feliz e realizado... pode ter certeza que com tudo que vier valerá a pena!
Pô Lodd, tava na cara que vc era diferente, mas depois que vc disse que tinha 130Kg e era fumante...Entendi o que me parecia familiar na sua dedicação e amor pelo triathlon. Você é um "Ex-Trouxa"!
Calma, eu explico. Não sou vidrado no filme nem nos livros e pra falar a verdade assisti 1 ou 2 Harry Potters, e foi lá que eu vi que eles "bruxos" chamam os "normais" de trouxas. Depois que vi isso no filme, comecei a distinguir trouxas (pessoas comuns, nem sempre sedentários, mas que acham que a São Silvestre é uma Maratona!!) dos triatletas (pessoas completamente focadas em seus objetivos e capazes de deixar uma festa na metade pra dormir razoavelmente mais cedo e poder sobreviver ao longão de corrida no domingo as 8h).
Cara, eu era trouxa também!
Eu tambem fumava, comecei aos 14 anos e parei aos 24, aos 26 já tinha perdido 15 kilos de gordura causados por fast food e cerveja (que eu tomava muiiiitttooo) e ganhei minha primeira medalha! 5º lugar na copa Brasil Fit em 2001 ou 2002.. Nunca havia ganho sequer na corrida de saco!!
Caras como você, que também foram "trouxas" no passado dão muito mais importância e valor ao esporte, e são muito mais apaixonado que os outros que sempre fizeram algo no esporte, nunca fumaram, beberam ou algo assim...
Não acho bonito o que fiz nessa fase da vida, mas é com certeza, algo que dá mais valor às minhas pequenas conquistas.
Continue assim, a vida é (e eu posso dizer com propriedade) muito melhor depois que a gente deixa de ser um trouxa!
Tenha paciência com os trouxas!
Olá, Lodd !
Achei teu blog no do Max...
Esse post cai como uma luva em todos nós. Não mudaria muitas letras do que vc escreveu, excelente.
Abraço,
Rafael
Muito bom... Acho que 95% das pessoas que vão ler esse relato/texto, vão se identificar com ele, e ainda vão acrescentar episódios e acontecimentos que ocorrem com cada um ....
Do tipo:
``vc estava no fast triathlon da rede globo??´´
ou
``Se vc corre uma maratona depois de nadar 4 e pedalar 180, com certeza ganharia uma prova só de maratona não é?´´
Bom.....acho que nosso ``vício´´ não prejudica ninguém... não entendo o por que as pessoas ficaram tão DESESPERADAS para falar que o que fazemos, não faz sentido.
Não faz sentido pra elas....
Pra gente faz e ponto final.
Apenas descordando um pouquinho da Joice.....
Acho que cada um que faz algo diferente, como os que vc citou:
``...seja esporte, ciência, religião, escrita, leitura...´´
E acrescento... músicos, e artistas..... é importante e VALE MUITO. Respeito cada uma delas.
Mas tenho que dizer que:
O nosso esporte (triathlon, ou bike ou corrida ou natação) é bem mais complicado.
MUITO mais complicado.
Um músico, por mais difícil que seja compor e se concentrar tocando um violão, ou um piano..... ele esta em um ambiente controlado. Se ele sentir fome, ou vontade de ir ao banheiro.....
ele se levanta da cadeira e vai.
Nós..... para fazer um bom treino, precisamos pedalar 100km no mínimo, ou seja.... ir até muito longe nas estradas, e com isso ficar a mercê do clima, organismo, e seres humanos. Se der fome ou vontade de ir ao banheiro, à 50km longe de casa... o buraco é bem mais em baixo.
De maneira nenhuma estou dizendo o que fazemos é melhor.....apenas dizendo que o que fazemos é em um ambiente totalmente descontrolado, por isso fica mais difícil.
Mas concordo que a paixão pelo que vc faz independente de esporte, trabalho, ou música.... é o que motiva a continuar fazendo ... e que se dane a opinião alheia.
Desculpa escrever tanto.
ciro
Todos estamos certos e todos estamos errados.
Mas que bom que fazemos estas reflexões.
E sem dúvida, o turbilhão pelo qual passamos a cada treino, nos torna um grupo que reflete sobre questões tão centrais, e mesmo assim, tão abandonadas pelo senso comum.
Mas me permitam lhes fazer um alerta.
Por mais que escrevamos que não nos sentimos melhores, é possível perceber em poucas palavras adiante um relance de soberba...
Não acredito em ser mais difícil, ou mais importante, ou mais sauda´vel.
É apenas a nossa escolha.
Dentro do possível, devemos estar felizes com ela.
Senão corremos o sério risco de termos atitudes, pensamentos e gestos; senão parecidos, de igual efeito: discriminatório, reducionista, desagregador, etc etc etc...
Façamos o que gostamos e sigamos amando.
Experimentem duas frases que, no meu caso, ajudaram:
"Se você vive perguntado porque, é porque nunca vai entender"
"Para sentir o que eu sinto, só me amando incondicionalmente ou fazendo o que eu faço."
São um pouco antipáticas, é verdade. Mas se ditas com honestidade, logo deixam claro que o que nos move não é o tempo, ou a distância; e sim o amor que temos por vencê-los.
Um forte abraço a todos e parabéns por serem tão guerreiros.
PS: Não chamem ninguém de trouxas. Não há sabedoria nisso. São apenas visões diferentes.
Mto bom cara ...
Parabens pelo blog.
Tambem cansei de escutar de pessoas que não andam nem duas quadras questionando "o que vc ganha com isso"...
abs
Augusto!
Eu não quero de modo algum começar qualquer tipo de discussão, muito menos no blog do Lodd, portanto estou falando numa boa. Nunca quis ofender ninguém, apenas quis fazer um paralelo com o filme/livro que retrata tamanha diferença, onde os "trouxas" se acham normais e os "bruxos" esquisitos.
Abraço!
Desculpa Lodd!
Fernando, não tem do que se desculpar. EU assisti os filmes e entendi muito bem o teu comentário. Principalmente dado o "nosso" background ;-)
O espaço pra comentários foi aberto com esse propósito: outros atletas e leitores colocarem os pontos de vista, e desde que eu não ache ofensivo eles permanecem!
Abs e obrigado a todos pelas opiniões
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